A leitura interdisciplinar de contextos operísticos: Uma forma inovadora de ensinar arte em projetos e ambientes educacionais
Sonia Albano de Lima, Claudio Picollo y Flavia Albano de Lima. Grupo de Ensino e Pesquisa em Interdisciplinaridade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (GEPI-PUCSP), no projeto PENSAR E FAZER ARTE
2012-01-16 / Revista Acontratiempo / N° 17
O ensino musical brasileiro,
cerca de 40 anos afastado da educação básica brasileira, ressurge
graças ao trabalho das entidades de classe, associações de pesquisa
e de educação musical frente aos órgãos governamentais, no intuito
de reformular a legislação reguladora referente à área. Este
revival germinou com a promulgação da LDB n. 9394/96 e se consolidou
com a implantação da Lei n. 11769/08,
que obriga a inserção do ensino musical nas escolas brasileiras de
educação básica até o ano de 2012. Essas medidas incentivaram o
Conselho Nacional de Educação a formular novas ações no intuito
de promover a inserção de atividades culturais, populares e eruditas
nas Universidades. Os programas de pós-graduação, por sua vez, têm
produzido inúmeras pesquisas em algumas áreas de conhecimento, demonstrando
os benefícios psíquicos, intelectuais e físicos que a música promove
no indivíduo; verificam, ainda, a interrelação desta linguagem com
as demais áreas de saber. Metodologias de ensino musical, projetos
sócio-culturais, atividades de extensão curricular e outros meios,
estão sendo introduzidos nas escolas e nos demais ambientes educacionais,
com o intuito de trabalhar contextos musicais sob diferentes abordagens.
O fantasma de um ensino musical brasileiro de bases eminentemente tecnicistas,
produzido a longa data nas escolas de música e nos conservatórios,
está sendo afastado gradualmente da sociedade e a difusão de um ensino
musical de natureza sensibilizadora tem adquirido real importância.
A música passa a ser pensada como uma arte funcional, a muito incentivada
pelo compositor e pedagogo H. J. Koellreutter, como uma das soluções
para a sua projeção na sociedade contemporânea:
[...] a função
da arte varia de acordo com as intenções e as necessidades da sociedade,
porque o sistema social, o sistema de convivência inter-humana é
governado pelo esquema de condições econômicas, porque é das
necessidades objetivas da sociedade que resulta a função da arte.
[...] Os sistemas de comunicação, de economia e de tecnologia, de
linguagem e de expressão artística, misturam-se uns aos outros, mergulhando
num único todo. A arte converte-se em fator preponderante de estética
e de humanização do processo civilizador.[...] apenas a transformação
da arte em arte ambiental e, portanto, em arte funcional, pode prevenir
o declínio de sua importância social (KOELLREUTTER, 1997, p. 37-8)
Tal atitude tem na interdisciplinaridade
uma ferramenta eficaz, capaz de promover diferentes abordagens. Pierre
Delattre (2006) vê na interdisciplinaridade características bastante
ambiciosas:
O seu fim é elaborar um formalismo suficientemente geral e preciso que permita exprimir numa linguagem única os conceitos, as preocupações, os contributos de um maior ou menor número de disciplinas que, de outro modo, permaneceriam fechadas nas suas linguagens especializadas. [...] a compreensão recíproca que daí resultará é um dos factores essenciais de uma melhor integração dos saberes. ( DELATTRE, 2006, p. 280).
A interdisciplinaridade
promove a reexploração das fronteiras das disciplinas, das ciências
e das zonas intermediárias existentes entre elas, com o intuito de
organizar os saberes e as parcelas de contribuição de cada um das
disciplinas. Ela sintetiza as diversas áreas em prol desta unidade.
Ela trabalha para o benefício do ser humano de forma holística. A
par desta função eminentemente científica, ela também se estende
para a educação, pelo fato de permitir a quebra da rigidez dos compartimentos
onde as disciplinas se encontram isoladas nos currículos escolares.
Mais que isso, ela permite a formação de uma etapa transcendente para
as disciplinas, disciplinas essas que se constituem em um recorte amplo
do conhecimento de uma determinada área. Ela busca a integração curricular
para além da troca de informação sobre objetivos, conteúdos, procedimentos
e compatibilização de bibliografia entre docentes. Ela permite a maior
integração dos caminhos epistemológicos, da metodologia e da organização
do ensino nas escolas. Na educação, a interdisciplinaridade tem o
compromisso de aproximar as disciplinas na busca da unificação do
saber e do resgate de uma unidade do conhecimento (LIMA, 2011).
Como nos diz Ivani Fazenda:
“ao surgir (a interdisciplinaridade) anunciava a necessidade de construção
de um novo paradigma de ciência, de conhecimento e a elaboração de
um novo projeto de educação, de escola e de vida” ( 1994, p. 18).
Observa-se nessa fala a dupla função da interdisciplinaridade: a científica
e a pedagógica, prevalecendo nas duas áreas, o forte desejo de unificação
do conhecimento.
Pautado nessas premissas,
o Grupo de Ensino e Pesquisa em Interdisciplinaridade da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, ligado ao Programa de Pós-Graduação
em Educação – Currículo, no ano de 2006, instituiu o projeto
PENSAR E FAZER ARTE de abrangência interinstitucional e interdepartamental.
A coordenação é de responsabilidade da Prof. Dr. Ivani Catarina Arantes
Fazenda, a realização e organização são de competência do Prof.
Dr. Claudio Picollo e o auxílio organizacional está a cargo da Prof.
Dr. Sonia Regina Albano de Lima.
Entre outros objetivos,
o projeto tem a finalidade de expor e analisar obras de artes diversas,
em forma de colóquio, sob uma perspectiva interdisciplinar. Dele participam
palestrantes convidados das mais diversas áreas de conhecimento, sejam
das artes, ou das ciências, com a incumbência de promover uma leitura
da produção artística apresentada. A leitura interdisciplinar desta
produção permite a atualização e ressignificação sócio-cultural
da obra de arte.
Essa modalidade de ensino
artístico assume uma dimensão pedagógica diferenciada, pois permite
o contato com os mais diversos pesquisadores e estudiosos, sejam administradores,
professores, terapeutas, psicólogos, arquitetos, musicistas, artistas
plásticos, teatrólogos, dançarinos, espiritualistas, sociólogos,
antropólogos, todos perseguindo o mesmo ideal – trabalhar em prol
de uma educação mais humanitária, mais integrada.
O trabalho de pesquisa
desenvolvido neste projeto tem tomado proporções consideráveis dentro
e fora da Pontifícia Universidade Católica. Muitos colóquios já
foram realizados em outras instituições de ensino e espaços culturais.
A TV PUC viabilizou até agora, cerca de 40 entrevistas organizadas
pelo Prof. Dr. Claudio Picollo, que estão sendo mostradas no Canal
Universitário, com autoridades e personagens ligadas ao mundo artístico,
trazendo para o ensino artístico, novas perspectivas de reprodução.
A pesquisa e atividades
desenvolvidas nos colóquios trazem para a sociedade, indivíduos com
senso crítico e estético mais aprimorado, mais conectado com as diversas
linguagens artísticas. Este saber extracurricular traz para a educação,
um conhecimento interligado às demais áreas de conhecimento e a possibilidade
de referendar uma produção cultural onde a subjetividade e o emocional
humano estão presentes. Além disso, o projeto permite um intercâmbio
cultural que vai desde o ensino superior até organismos e espaços
educativos interessados na compreensão e apreciação da produção
artística.
Na elaboração dos colóquios
os palestrantes atuam em parceria. As leituras veiculadas
devem estar integradas umas às outras; os palestrantes não priorizam
um trabalho eminentemente técnico referente às suas áreas de atuação,
mas um serviço pedagógico que leva em conta a capacidade de entendimento
do público presente. O diálogo dos ouvintes com os palestrantes é
contínuo, constante e prioritário. Cada expositor deve conduzir sua
análise de acordo com a sua formação profissional e respeitar a formação
profissional dos demais expositores. A pesquisa é um ponto fundamental
para o desenvolvimento dos trabalhos. A fundamentação teórica transmuta-se
em cada apresentação, em função do objeto de arte exposto e da reflexão
dos palestrantes convidados, que atuam nas mais diversas áreas de conhecimento.
Desta maneira, prioriza-se o processo de construção da pesquisa, fazendo
dela uma prática constante. A análise da obra de arte pressupõe por
parte dos palestrantes, uma reflexão acerca dos conceitos, mitos ou
práticas que cercam a produção artística em constante processo de
ressignificação. Os convênios e parcerias com institutos, associações,
grupos de pesquisa e órgãos governamentais, confirmam ainda mais a
natureza interdisciplinar deste Projeto.
Partindo de pressupostos
pedagógicos democráticos e flexibilizados, o trabalho exposto atinge
tanto o público não familiarizado com o universo artístico que tem
interesse e prazer em conhecê-lo e apreciá-lo, como também, os indivíduos
mais familiarizados com este cenário. O contato direto dos participantes
com os palestrantes cria um diálogo interdisciplinar que se estende
para a própria obra de arte, permitindo uma leitura artística de bases
hermenêuticas. As diferentes especificidades de análise trazem para
a atividade, discussões inusitadas.
Dos colóquios realizados,
o gênero operístico foi aquele que obteve o maior número de apresentações,
dado o interesse do público. Não se trata de um contrasenso se pensarmos
a ópera como uma super arte que abrange e unifica todas as demais
artes. A ópera traz em seu âmago o ideal humanista da universalidade.
Ela trabalha com inúmeros valores humanitários: os arquétipos, os
mitos, a ética, a moralidade, o que lhe permite tornar-se um objeto
artístico de maior projeção e repercussão sócio-cultural. Ela trabalha
com textos literários consagrados, comporta uma sacralização que
a música instrumental e vocal sozinhas não detém junto ao público
não familiarizado com o ambiente musical. O fato de estar alicerçada
em um texto verbal capaz de explicitar os fatos da vida em drama ou
comédia, confere maior palpabilidade a este gênero musical. Ela atinge
mais diretamente o público ouvinte e perpetua um passado humano em
um presente teatralizado. O texto literário no qual ela está embasada
sempre se atualiza e detém um valor cultural significativo.
Não basta conhecer o
libreto, a música, a performance dos intérpretes, dos dançarinos,
dos atores. Ela necessita de uma leitura mais complexa que percorre
a semiótica, a psicologia, a mitologia, a história, a cultura, a sociedade.
Ela se presentifica na sua própria sacralização e a leitura interdisciplinar
dessa produção parece-nos muito adequada, não só pelos aspectos
musicais e artísticos por ela abordados, mas, também, pelo seu poder
de referendar tanto a modernidade cultural como a tradição consolidada
pela humanidade. Conceitos e valores morais e éticos integram o universo
operístico, sejam eles voltados para o bem ou para o mal. Situações
adversas são expostas no mesmo contexto musical, trazendo a público,
toda a complexidade humana.
Esta comunicação, em
particular, vai expor em linhas gerais o trabalho produzido em um dos
colóquios realizado na Livraria Cultura de Campinas, São Paulo, no
ano de 2010, restrito à ópera La Traviata,
de Giuseppe Verdi. Seus palestrantes foram o Prof. Dr. Claudio Piccollo
(GEPI-PUC/SP), a Prof. Dr. Sonia Albano de Lima (GEPI-PUC/SP) e o convidado
Dr. Spartaco Angelo Vizzotto, psicanalista pela Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo, membro do Centro de Estudos da Teoria
dos Campos.
A platéia for formada
pelos freqüentadores da livraria e pessoas filiadas ao Projeto Ópera
e Literatura, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Evangelista, também
membro do GEPI-PUC-SP.
Primeiramente foi realizada
uma apresentação artística composta de duas árias desta ópera:
Sempre Libera e Adio. Posteriormente, os palestrantes resumiram a ópera,
expondo em DVD os trechos mais importantes: Ah forse lui,
Sempre Libera, Prendi o quella imagine.
Os recortes foram extraídos do DVD intitulado Ópera La Traviata, produção
de Franco Zeffirelli.
Os comentários que nortearam
a exposição concentraram-se mais diretamente nas publicações de
COELHO, Lauro Machado (2002), CASOY, Sergio (2006 e 2009), KOBBÉ (1997)
e na partitura da ópera de G. Schirmer, Inc (MCMLXI). A apresentação
teve a duração de três horas. Cada trecho exposto foi seguido da
fala de um dos conferencistas, abordando situações interligadas à
exposição, seguido de diálogo com a platéia.
O colóquio concentrou-
se não só na explanação de aspectos importantes circunscritos
à ópera de Verdi (1853), mas ainda, ao texto literário (1848) e à
peça teatral (1852), que motivaram a sua criação, ambas idealizadas
por Alexandre Dumas Filho, com o título “ A Dama das Camélias”.
Desta forma, o colóquio integrou três gêneros artísticos:
a literatura, o teatro e a ópera. O compositor Giuseppe Verdi, influenciado
pela peça teatral e pelo romance de Dumas, pauta-se no libreto de Francesco
Maria Piave para compor esta ópera, uma das mais célebres e apreciadas
do romantismo italiano.
Tanto Alexandre Dumas
(1824-1895), como G. Verdi (1813-1901) e Francesco Maria Piave (1810-1876),
foram figuras de grande projeção na época, muito ligados à
estética romântica e engajados ao movimento político e aos problemas
sociais deste período.
Francesco Maria Piave,
após estudar em um seminário, freqüenta os meios literários românticos,
escreve vários libretos e é ardente patriota da UNITA ITALIANA. Verdi,
considerado um dos melhores compositores românticos italianos, exerceu
enorme influência política e cultural no século XIX. Visionário
e engajado politicamente, é uma figura emblemática do processo de
reunificação da península italiana. Alexandre Dumas Filho (1824-1895),
filho natural do romancista Alexandre Dumas (1802-1870), enfrentou sérios
problemas sociais pela condição de ser um filho bastardo. A produção
literária deste romancista reflete a propensão a ser o advogado dos
“filhos sem pais” e das “mães solteiras”. Sua temática circunda
os dramas familiares, a prostituição, o adultério, o divórcio, a
condição feminina, o que lhe valerá a reputação de “autor de
escândalos”. Sua obra é extremamente marcada pelo tema da desagregação
da família e inspirada por certo moralismo – retratado ao longo do
romance que originou a ópera.
Do ponto de vista da
dramaturgia, Dumas Filho renovou o teatro, criou uma nova dramaturgia.
Sua obra é a primeira a se impor depois do golpe de estado de Louis
Napoléon, em dezembro de 1851. Nasce com ele a comédia de costumes
e a voga desta fusão, dificilmente suportável, do romantismo passional
e da observação social com fins edificantes, durará o tempo de um
regime. Seu compromisso social é trabalhado – além das obras literárias
– nos longos prefácios. No Prefácio do Fils naturel, por
exemplo (1858),ele defende a existência de um teatro “útil” que
é um teatro à serviço da humanidade por criar uma obra de intervenção
social e de sensibilização.
Tanto Alexandre Dumas
Filho, quanto G. Verdi, trazem para a produção artística, insites
de suas vidas amorosas. A amante de Alexandre Dumas inspira a personagem
Marguerite Gautier - a heroína de La Dame aux camélias e, a
ligação de Verdi com a cantora Giusepinna Strepponi, ensejou a trama
desenvolvida na ópera La Traviata, espelhada na personagem Violetta
Valery. O filme Giuseppe Verdi
– O Rei da Melodia, produzido por Maleno Malenotti e dirigido
por Rafaello Matarazzo, de 1953, e os escritos de Sergio Casoy, retratam
alguns momentos deste romance conturbado vivido pelo compositor.
Com as óperas Rigoletto
e Il Trovatore, realiza-se a trilogia romântica de Verdi. Nessas
três óperas, fica claro como o universo moral aparece mais claramente
articulado, fruto da experiência vivida, da observação da humanidade,
da sabedoria adquirida com o amadurecimento de sua intuição artística.
As três personagens – Rigoletto, Azucena e Violetta Valery têm um
traço em comum, ou seja, é através do sofrimento, da dor, da humilhação,
da perda, que superam o estágio inicial do estereótipo a elas atribuído.
Na ópera, Valery tem de acertar contas com um destino cruel que integra
de maneira sofrida, a sua vida de cortesã, o amor, a abnegação e
a morte.
É uma simpatia profunda
que Verdi tem por esses personagens, ele pode compreendê-los pela identificação
que tem com eles: a sua própria necessidade de superar a dor causada
pela perda da família; a solidão; as privações; os fracassos do
início de sua carreira; a rejeição da sociedade à sua vida privada;
de tal sorte que em cada um desses personagens, ele encontra uma faceta
da sua própria personalidade.
O romance de Dumas Filho
inspira-se em um fato real : o amor de Agénor de Gramont (1819-1880),
duque de Guiche, futuro ministro dos Affaires étrangères de Napoléon
III, pela cortesã Marie Duplessis. O tio de Agénor intercede junto
a Marie para por fim nesta relação. Agénor de Gramont é mandado
para Londres por algum tempo, esquecendo-se de Marie Duplessis. Esta,
por sua vez, casa-se com o conde Édouard de Perrégaux e morre de tuberculose
em fevereiro de 1847. O enredo traçado é um fato comum para a época
- o amor de uma cortesã tuberculosa, Marguerite Gautier e um jovem
da sociedade parisiense, Armand Duval.
É o próprio Armand
Duval quem conta sua história, portanto, temos no romance uma narrativa
dentro da narrativa. É curioso notar a posição do narrador-onisciente
e a de Armand Duval, que é o personagem que age por ele. Essa onisciência
é usada como uma máscara para encobrir as iniciais de Alexandre
Dumas Filho, pois o nome de Armand Duval tem as mesmas
iniciais.
Apaixonado por Marguerite,
Armand torna-se seu amante e faz com que ela renuncie à sua vida
de cortesã para morar com ele no campo. O idílio é interrompido
pelo pai de Armand que pede à Marguerite que se afaste dele já
que essa relação está ameaçando destruir a vida de sua família.
Ela, morta de dor, sacrifica-se e para que Armand não desconfie, finge
ter se cansado dele, preferindo a vida de cortesã. Ele, magoado, afasta-se
da cortesã e só toma ciência da verdade, quando Marguerite está
à beira da morte.
A morte de Marguerite
é narrada como uma agonia sem fim, pois além de ter perdido seu
amor foi abandonada por todos, só lhe resta, então, lamentar a vida
que ela poderia ter tido ao lado de seu amante.
O romance é marcadamente
surpreendente pelo retrato que Dumas Filho faz da vida parisiense mundana
do século XIX e do caráter frágil e efêmero do mundo das cortesãs.
Na verdade, o romance pode ser a biografia romanceada da vida de uma
demi-mondaine, Marie Duplessis, ex-amante de Dumas, que aos vinte
anos, pelo caminho da prostituição, efetua uma fulgurante e brilhante
ascensão social. Ele por sua vez, teve de abandoná-la, tendo
em vista o luxo em que vivia e que não foi capaz de custear.
O romance e a peça teatral
impressionaram muitíssimo a sociedade da época. Neles, Marguerite
adquire uma nova insígnia – A Dama das Camélias. Esse termo
consagrou-se na língua francesa, como sinônimo de mulher “entretenue”,
o que para nós se define como amante. A força dessa insígnia está
contida na frase de Armand : « Eu nunca vira Margarite com outra flor
que não fosse a camélia. Tanto que Madame Barjon, sua florista, apelidou-a
de A Dama das Camélias, e foi esse apelido que se propagou
no tempo (1848). Tão peculiar se tornou o termo que outro romancista
francês, André Maurois, relata em La Vie de Disraëli, publicado
em 1927, o quanto o apelido se propagou na sociedade parisiense: «
Dessa forma, em 1860, as jovens não pareciam ter outra ambição senão
a de serem chamadas de Dama das Camélias ». No romance o termo adquire
um novo significado, ou seja, a disponibilidade de Marguerite para os
seus amantes. Ela usava camélias brancas quando estava disponível
aos homens e, vermelhas quando não podia atendê-los. Jamais Marguerite
foi vista sem portar uma camélia e esse hábito se estendeu por toda
sua vida.
Muitos são os paralelos que se estabeleceram entre o romance, a peça teatral, a ópera e a vida real de Dumas. No romance e na peça teatral a Dama das Camélias assume o lugar de Marie Duplessis. Armand o lugar do Duque de Guichê, mas também, o do próprio romancista. Entre o fato real e a narrativa, quem interrompe o relacionamento amoroso de Margarite e Armand é o próprio pai, o que na vida real foi feito pelo tio. Dumas Filho deixa o testemunho escrito de ter se inspirado no personagem de Alphonsine Plessis, para criar o seu romance.
Dumas descreve uma Marguerite simpática e quase virtuosa, apesar de seu passado, o que toca profundamente o leitor. Este não fica insensível ao sofrimento recíproco dos dois amantes, obrigados a obedecer às normas da sociedade da época.
Na ópera, Marguerite adquire o nome de Violetta Valery e Armand passa a se denominar Alfredo. Enquanto a peça teatral está composta de 5 atos, a ópera contempla apenas 3 atos. O enredo da ópera é o mesmo da peça teatral. Poucas foram as modificações introduzidas pelo compositor.
Verdi e Piave criam, com La Traviata, uma ópera política, uma reflexão sobre o status da mulher em um mundo dominado pelos homens. O assunto de atualidade na época não é apenas uma obra de ficção, como já vimos. Verdi e seu libretista Piave retratam todas as crueldades deste espelho social onde se revelam as coxias de uma sociedade cheia de moral e hipocrisia. Diante da intransigência de Germont, o pai de Alfredo, Violetta se sacrifica para assegurar o futuro de uma moça prometida à felicidade burguesa, a irmã de Alfredo, o que não poderá ocorrer se a união com Alfredo perdurar, tendo em vista o seu passado comprometedor. Sergio Casoy descreve com exatidão, os sentimentos que permeiam a cena: “[...] na Traviata, Verdi desenha com clareza a figura do pai manipulador, que age intencional e friamente em busca dos objetivos que considera certos e necessários, sem se importar com o estrago feito na vida do filho. Não é mais movido por paixão, ódio, loucura ou religião, e sim por raciocínio e cálculo” (CASOY, 2006, p. 59).
A aspiração de Violetta não se resume à busca do êxtase amoroso. Seu sacrifício não a conduz, como gostariam as normas da ópera, à loucura ou ao convento. Ela se reporta a sua condição de cortesã e, como tal, afasta-se do seu grande amor. Esta situação faz Germont parecer imoral com seus padrões burgueses e, Violetta, considerada pela sociedade uma mulher perdida, “desviada”, demonstra ter um profundo sentimento moral.
Em seu tratamento musical Verdi evita todo pitoresco descritivo. As emoções interiorizadas ultrapassam as paixões exacerbadas. O “bel canto” tradicional é submetido a uma nova expressão. Não é um fim em si mesmo, um fogo de artifício para a beleza do gesto e da técnica, mas um meio de expressar a verdade e a realidade da situação vivenciada. As difíceis proezas vocais da grande Ária de Violetta, no final do primeiro ato, mostram a complexidade e ambiguidade de sentimentos que acometem a cortesão quando ela intenta afastar de seu peito um sentimento nobre, para retornar ao mundo de frivolidades que ela tanto odeia. Nesta ópera, Verdi consegue tornar real, a gama dos sentimentos humanos traçados. Ele também se mostra como um profissional perfeito nos contrastes musicais que ele utiliza para acentuar o trágico. A abertura da ópera começa com um adágio onde estão presentes os sentimentos de dor, de morte, seguindo-se um ambiente de festa, de luxúria. No ato final, o carnaval é o pano de fundo na morte de Violetta. Tanto na Traviata como no Rigoletto, a ária é tratada como uma síntese de estados de espírito complexos e contraditório que não paralisam a ação (COELHO, 2002, p. 361)
A escola verista encontrará aí o fundamento de um de seus procedimentos dramáticos favoritos. A morte providencial de Violetta, desculpada pelo amor, desanuvia a consciência de Germont e dos espectadores. Só com a sua morte, Alfredo poderá se casar e ser feliz. A moralidade está ressarcida.
La Traviata é uma das óperas mais populares de Verdi. Tanto o canto como a orquestração ou a linha melódica acusam um clima de intimidade novíssimo e surpreendente, junto a uma descrição perfeita dos diferentes graus e matizes do amor, desde o puramente frívolo ao mais profundo e apaixonado. Verdi viveu em uma época de opressão e censura muito forte o que certamente o levou a se expressar com este caráter intimista e surpreendente. Basta ouvir os coros da Traviata para vislumbrarmos as dimensões de sua genialidade. O Sempre Libera, é inovador, pois emprega a interrupção no fluxo dramático para uma reflexão lírica que isola um único sentimento e o analisa de forma paradgmática (COELHO, 2002, P. 361). Ela contempla dois momentos importantes da vida de Valery, uma parte relacionada ao desejo e a outra ao destino, à realidade. Por que sonhar com o amor? É na verdade, uma viagem psicológica onde toda a história de Violeta é rememorada. É um rememorar a vida colocada num painel bem realista, uma confissão interior, uma auto análise que aponta para os próprios questionamentos de vida; é um hino ao amor tocado por uma conturbação interna.
Observa-se em toda a ópera a necessidade de termos na mesma personagem, um soprano coloratura, um soprano lírico e um soprano dramático, que se presentifica conforme a necessidade expressiva que a circunda. É uma ópera para sopranos experientes. Requer um senso dramático inconfundível, uma técnica perfeita, excelente respiração e fraseado. Muitas outras informações foram prestados pelos palestrantes, todas pautadas nas referências bibliográficas abaixo citadas.
Depois das informações prestadas pelos palestrantes Claudio Picollo e Sonia Albano de Lima, o psiquiatra Spartacco teceu uma análise do texto operístico sob uma perspectiva psicanlista. O texto a seguir, bem elucida os seus sentimentos com relação a este trabalho:
A “letra morta” dos depoimentos técnicos precisa urgentemente ser ressuscitada pela injeção de sangue opinativo, quase ideológico, da tomada de posição frente à teoria. [...] Em que pese a psicanálise seja hoje tão difundida como parte da cultura, como qualquer disciplina do conhecimento, ela precisa de oficinas para manter sua sobrevida e garantir seu desenvolvimento. [...] Toda circunscrição de território de pensamento engendra uma inibição pressuposta da criatividade, que é essencialmente disruptiva. Novas idéias e formulações só são tardia e modicamente aceitas nestes ambientes [...] geralmente quando o portador já está muito escolado, ou em fim de carreira, podendo ser taxado de gênio ou demente, conforme a conveniência. [...] Deixei (durante minha participação) que a obra se aproximasse de mim diretamente e através da visão de meus colegas, observando como se formava um novo corpo crítico dentro do grupo de trabalho e como isto afetava meu discurso sobre novos fenômenos, com o mesmo objeto artístico como pano de fundo. [...] A sensação é como estar dentro de uma correnteza fértil. Prazerosa, portanto, pedindo repetição. [...] É nesta medida que cresce a nossa responsabilidade como pólo culto da sociedade, nos obrigando a criar novas estratégias para a difusão do ensino artístico que não se equiparem apenas ao lazer, mas que possam suscitar o interesse vivo pelo estudo e desenvolvimento pessoal. O método psicanalítico é um dos instrumentos que pode ser muito útil neste processo (2011) 1
Para finalizar o colóquio, foi apresentado um trecho da comédia romântica passada no cinema, intitulada PRETTY WOMAN (Um sonho de mulher), 1990, direção de Garry Marshall, roteiro de J. F. Lawton, com elenco original de Julia Roberts e Richard Gere. A cena escolhida foi aquela em que a prostituta Julia Roberts, apaixonada por Richard Gere, um intelectual e distinto homem de negócios, é levada para assistir a ópera La Traviata e se identifica com a personagem, chegando às lágrimas. Este momento traz para a platéia presente o substrato do nosso trabalho. Nele todas as informações repassadas para o público durante a explanação adquirem um novo sentido. Promove-se uma ressignificação desta produção artística, ainda que as repostas a esta exposição, não contemplassem a riqueza acadêmica e cultural que a cena pôde traduzir. O público presente, a partir da exposição de nosso trabalho, revela aos conferencistas realidades vivenciadas na modernidade que em muito se assemelham a aquelas expostas na apresentação. Seus relatos testemunham um aprendizado musical, literário, teatral e de vida, que dificilmente será esquecido. Esta verdade estimula a continuidade dos colóquios realizados no Projeto Pensar e Fazer Arte.
Conforme palavras do Prof. Dr. Cláudio Picollo, fica evidente a importância de adotarmos um pensamento interdisciplinar no exame de obras de arte: “Um professor disciplinar preso ao seu material didático, embora possuindo um bom repertório, muitas vezes é levado a se agarrar mais e mais à sua gaiola. Ele não tem a oportunidade de revisitar outras gaiolas. É um fato desolador, pois eles passam a não educar, mas sim, reproduzir um conhecimento cristalizado, o que representa a desgraça maior na relação ensino-aprendizagem”.
REFERÊNCIAS
CASOY, Sergio. (2009) Contos de óperas & Cantos. São Paulo: Algol Editora, p. 67 a 72.
CASOY, Sergio.(2006) Óperas e outros cantares. São Paulo: PerspectivA, p. 46 a 65.
COELHO, Lauro Machado.(2001) A ópera romântica italiana. São Paulo: Perspectiva, p. 325 a 383.
DELATTRE, Pierre. (2006) Investigações interdisciplinares: Objectivos e dificuldades. In: POMBO, Olga; GUIMARÃES, Henrique Manuel; LEVY, Teresa. Interdisciplinaridade - Antologia. Porto: Campo das Letras, p. 279-99.
DUMAS, Alexandre. (2004) A Dama das Camélias. São Paulo, L&PM Editores.
FAZENDA, Ivani C. A. (1994) Interdisciplinaridade: História, teoria e pesquisa. Campinas, SP: Papirus, 143 p.
GUARNIERI, Ennio ( cinematografia). DVD: Ópera La Traviata, de G. Verdi. Produzido por Tarak Ben Ammar & allium. Editado por Franca Silvi et allium.Design de produção por Franco Zeffirelli. Production Management por Umberto Sambuco.
KOBBÉ, Gustave. (1997) Kobbé: o livro completo de óperas. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed;
KOELLREUTTER, H. J. (1997) O ensino da música num mundo modificado. In: KATER, Carlos (org). Cadernos de estudo: educação musical. Belo Horizonte: Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, p. 37-46.
LIMA, Sonia Albano. (2011) Ambiente musical, pensamento interdisciplinar e educação. GHIENA, Alejandro Pereira et allium (Ed), Actas del X Encuentro de Ciencias Cognitivas de la Musica. Buenos Aires/ Argentina: SACCOM /Universidad Abierta Interamericana. ISBN n. 978. 987. 27082. 0. 7. 20-23 Julio de 2011, p. 911-917.
MALENOTTI, Maleno (produtor). (19953) MATARAZZO, Rafaello (direção). DVD: Giuseppe Verdi – O Rei da Melodia , duração 118 minutos, legenda em Português.
SOPEÑA, Federico. (1974) Música e Literatura. São Paulo: Editora Nerman, 1974.
VERDI, Giuseppe. La Traviata. Opera in Three Acts. USA: G. Schirmer, Inc. Ed. 2420. Libretto by Francesco Maria Piave. English Version by Ruth and Thomas Martin.
1 Entrevista no prelo.
0 comment